sábado, 28 de fevereiro de 2009

Não é preciso dizer mais nada, pois não?

Alfredo Mendes "Despedido num minuto e meio - dois minutos, vá lá"

Público (P2), 26.02.2009, Ana Cristina Pereira

Chegou ao jornalismo em 1972, entrou no Diário de Notícias em 1977. A Controlinveste quer dispensá-lo. Nos últimos cinco anos, pelo menos 180 jornalistas perderam o emprego na área de influência do Porto. Está em marcha um "processo de desertificação" na área dos media

Na manhã de quinta-feira, 15 de Janeiro, o telefone tocou em casa de Alfredo Mendes. "É do jornal", anunciou a mulher, ao passar-lhe o aparelho. "Está aqui o director adjunto Rui Hortelão para uma comunicação nada agradável", avisou alguém, do outro lado da linha. Só entrava às duas, mas correu para o metro. Por volta do meio-dia, chegou ao Diário de Notícias. Não tardaram a chamá-lo. Era um dos 122 trabalhadores do processo de despedimento colectivo do grupo Controlinveste. "Fui despedido num minuto e meio - dois minutos, vá lá".
Trabalha no DN desde 1977: "Dediquei-me mais ao jornal do que à família e aos amigos. Tenho provas! Tenho os recortes de tudo o que escrevi. E agora? Como digo aos meus filhos para serem trabalhadores leais, para viverem para a empresa? Isto é tão humilhante, tão revoltante!"
Nasceu numa aldeia de Foz Côa. Mudou-se aos dez anos para Leça da Palmeira. A avó, a mãe e a tia "fizeram o sacrifício" de ir para a cidade para lhe darem uma profissão. Na terra não havia futuro. "Na escola primária, era o único calçado", inclusive nos dias com neve de 20 centímetros.
Os professores gabavam-lhe a escrita. Nos testes, fazia a redacção de "sete ou oito em troca de copianços de Matemática". Meteu na cabeça que havia de ser jornalista. E aos 16 anos mandou uma carta para o Jornal de Notícias: "Se dentro de uma semana não tiver resposta, escrevo para O Comércio do Porto."
Recebeu uma carta assinada por Freitas Cruz, então subdirector. Ficou extasiado. Pelo convite para ir à redacção. Pelo tom solene. Pelo formato do envelope: nunca antes vira um envelope com janela. Foi ao JN. Aguardou um quarto de hora "numa salinha". A admirar o chão alcatifado. De repente, apareceu "um senhor muito aflito a pedir desculpa pela espera".
Freitas Cruz encorajou-o. Disse-lhe que o adivinhava "bom jornalista". Aconselhou-o a prosseguir os estudos e convidou-o para colaborador desportivo. Faria "jogos sem importância". Na época, não havia cursos de Jornalismo. Era assim que se entrava na profissão.
Os jornalistas "eram homens que andavam no meio do público-alvo". Alfredo Mendes diz homens e eram homens mesmo. As mulheres estavam a chegar ao jornalismo. No JN, trabalhavam apenas duas. O rapaz ficou encantado com gargalhadas, os pés-de-vento. Tantas vezes, se deixava estar "até às quatro da manhã, para trazer o jornal debaixo do braço".
Cobriu pequenos jogos de 1972 a 1977. As assembleias dos clubes, às vezes, arrastavam-se até de madrugada. Ganhava 20 escudos por peça. E "era impensável um jornal pagar um táxi ou uma refeição". O jornalismo era uma área tão mal paga que até os editores tinham outro emprego - trabalhavam em bancos, agências de seguros... Apesar do pouco ganho, Alfredo Mendes entrava na redacção e via alegria. Hoje, parece-lhe que "quem entra numa redacção vê um velório."
Antes da Internet
Mudou para o Diário de Notícias em 1977. E encontrou "outro ambiente fantástico, de gente de muita cultura, de grande coragem, grandes borgas". Teve "oportunidade de fazer de tudo". Desporto, cultura, política, economia, até a cotação da bolsa quando a havia no Porto. Não havia Internet. Quase não havia telefones. Era quase sempre preciso ir aos sítios: "Percorri o Norte todo. Fiz desde o bairro de lata à alta sociedade. Fui a muitas recepções representar o jornal."
Trabalhava numa delegação, "o arquivo era miserável". Para enriquecer as suas histórias, gastou "milhares de horas" a fazer o seu. Tem o vício de guardar tudo. Por exemplo: lê que Florbela Espanca andou a passear os cães na praia de Matosinhos; aponta a informação na ficha Praia de Matosinhos; mais tarde, ao escrever um artigo sobre um naufrágio naquele sítio, vai buscar a referência. "O DN fez uma colecção de roteiros turísticos a partir de viagens na minha sala".
Até à década de 90, trabalhar no DN foi "exaltante". Com a saída do PÚBLICO, concorrente directo, o diário "começou a perder identidade". Depois, "entrou numa estratégia de ziguezague: quer ser tudo".
Um dia, Alfredo Mendes acordou, tinha 53 anos, e estava desempregado. Quantos textos já escrevera sobre trabalhadores, de rompante, sem emprego? E ali estava ele, com um filha de 18 anos e um filho de 13, a mulher desempregada, um crédito à habitação para pagar. "Vou receber uma indemnização que não vale um carro de administrador. Trinta anos de dedicação não dão para comprar um carro de administrador!"
Não era o único jornalista do pacote. Dentro dos 122 profissionais que a Controlinveste quer dispensar estão 75 jornalistas - do Jornal de Notícias, do Diário de Notícias, do 24 Horas, d'O Jogo e de outras pequenas publicações: 54 na zona de influência do Porto. Motivos avançados: "Desequilíbrio económico-financeiro num mercado em queda", "necessidade de reestruturar a empresa, nomeadamente eliminando postos de trabalho redundantes e adequando o nível de recursos humanos à actividade desenvolvida e à evolução tecnológica".
Pelo mundo inteiro a imprensa tem perdido leitores. Em tempo de crise, o investimento em publicidade é um dos primeiros a ressentir-se, como refere o director do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho, Manuel Pinto. E a publicidade é "vital para a viabilidade dos media".
O que parece a Joaquim Fidalgo, professor no mesmo estabelecimento de ensino superior, é que os media "estão a sentir os efeitos de uma lógica que põe em evidência as economias de escala e os avanços tecnológicos": concentram-se serviços, fecham-se delegações. Só que, na comunicação social, não é igual estar em Lisboa ou em Bragança: "A proximidade importa".
Longe do Portugal real
"Dos importantes títulos de imprensa do Norte, mantém-se hoje, como seu baluarte e com um forte enraizamento social, o Jornal de Notícias", lembra Carlos Lage, presidente da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte. O Comércio do Porto morreu em 2005 (50 jornalistas ficarem sem emprego). E O Primeiro de Janeiro transformou-se numa caricatura do que era (32 jornalistas despedidos em Agosto de 2008).
Nos últimos cinco anos, pelo menos 180 jornalistas da área de influência do Porto perderam o emprego. Com este corte na Controlinveste, o 24 Horas deixou de ter delegação na cidade, o DN reduziu a sua a metade. Ainda há pouco, o grupo Média Capital dispensou três jornalistas; o ano passado o Expresso dispensou dois; há dois anos o PÚBLICO dispensou 11 - o que implicou acabar com as delegações em Braga, em Aveiro e em Vila Real.
Estará o Norte a tornar-se irrelevante? "Não, o Porto, o Norte, não é irrelevante. O Porto e o Norte estão é a merecer pouca atenção dos media", responde o presidente do Sindicato dos Jornalistas, Alfredo Maia. "Todo o Portugal real - que tem a ver com as regiões, com as localidades - está".
"No final dos anos 80, havia uma dinâmica de descentralização", lembra Joaquim Fidalgo. Depois, o país recuou. Se cairmos de pára-quedas numa reunião de autarcas e outras personalidades, veremos como isso é verbalizado. "O centro de todas as decisões está em Lisboa", resume Armindo Abreu, presidente da Câmara de Amarante. "Umas coisas puxam as outras", consente Castro Fernandes, presidente da Câmara de Santo Tirso.
Este "processo de desertificação", na opinião de Carlos Lage, "deve suscitar preocupação e ponderação". "Não existem sociedades sem espaço público, nem vontades ou destinos colectivos sem voz. Uma informação pública construída a partir de uma base social ou geográfica única é tão inaceitável e danosa como a que é construída por um código ideológico e de opinião exclusivista", diz.
Haverá muito quem ache que "a informação está tão disponível, que há tantas agências, tanta Net, que não é preciso ter jornalistas onde as coisas acontecem", admite Fidalgo. Mas "a tecnologia não substitui o contacto com as pessoas". Não se pode "fazer adequada cobertura a distância".
Alfredo Mendes não podia estar mais de acordo: "Como é que os jornais podem ser uma alternativa à televisão, à Internet? Fazendo o jornalismo de 'rabo sentado', seguindo a grelha da televisão, indo à Internet? Estão a basear-se demasiado na Internet. Não há ligação ao público. Vão a Nova Iorque buscar ideias, mas não vão à Praça da Liberdade, à Avenida dos Aliados."
Jornalismo "à chinesa"
Foi sempre escolhido para as obras de prestígio editadas pelo DN, como o Notícias do Milénio. Textos seus foram seleccionados para manuais escolares. Atribuíram-lhe diversos prémios. Agora, o despedimento colectivo coloca-o entre quem teve pior avaliação. E isso "é humilhante, revoltante". "Nem sequer tenho uma carta como qualquer pessoa que anda nas obras a mexer massa. Nunca pensei que isto fosse possível num país civilizado".
Não sabe quem o avaliou, em que período, com que critérios. Os jornalistas abrangidos pelo mesmo processo já enviaram uma carta a diversas entidades dizendo que foram alvo de despedimento "selectivo", nomeadamente por terem vindo "a chamar a atenção e a reclamar sobre o desvio editorial que se verifica num jornal de referência como o DN". As negociações não deram em nada. A carta de despedimento chega esta semana - talvez chegue hoje.
Não será fácil recomeçar aos 53 anos: "Aumenta a esperança média de vida e um jornalista com mais de 40 anos é para abater". Proliferam cursos de Comunicação Social. Todos os anos, centenas de jovens tentam entrar na profissão. Alfredo Mendes desanima perante o que chama "estratégia chinesa": "Em vez de se ter profissionais com experiência, com qualidade, nos quadros das empresas, tem-se estagiários a trabalhar à borla. E sai um jornalismo padronizado, sem memória, sem génio e sem arte.
E as redacções transformaram-se em espaços frios, tristes."

1 comentário:

O Manuel do Jornalismo disse...

um texto corajoso sobre uma de muitas vidas deitadas ao lixo pelos homens do futebol, armados em eruditos.